15 de julho de 2008

Gosto de Infância

Gosto de infância - Prazeres proibidos: já provou pastel de feira e suco de revólver?
Ana Téjo


Minha mãe sempre teve horror às comidas preparadas e vendidas na rua. Demorei cerca de trinta anos para comer meu primeiro acarajé (mesmo tendo morado em Salvador) porque, segundo ela, era morte na certa. Minha primeira experiência foi em um restaurante baiano em São Paulo, no começo de um feriado. Afinal, se passasse mal, se baixasse em algum pronto-socorro, teria pelo menos alguns dias para morrer, ressuscitar, me recuperar e voltar ao trabalho. Tanto não morri que continuo aqui, escrevendo e comendo acarajé de quinze em quinze dias, religiosamente. Ah, e com tudo dentro!O estandarte dos "proibidos" era o pastel de feira. Não sei como consegui comer o primeiro. Provavelmente, foi acompanhada de alguma outra pessoa. O fato era que minha irmã e eu éramos loucas por pastéis de feira, para horror da minha mãe. Já na quarta-feira, começávamos o trabalho de lavagem cerebral em casa, nos alternando em súplicas para que minha mãe se compadecesse e trouxesse pastéis na sexta-feira. As desculpas para não trazer variavam:
O problema de não ter provado nunca um
suco de revólver é que, com o passar dos anos, ele adquiriu uma aura de mistério, tornou-se "a coisa proibida"
- Quando passei pela barraca na volta, o homem do pastel já tinha ido embora.
- O óleo estava preto, preto. Acho que eles fritam esses pastéis em óleo velho de caminhão.
- Só tinha de carne e você sabe que o de carne, eu não compro porque carne de pastel de feira só pode ser de gato!
- Ouvi uma notícia ontem dizendo que o palmito está contaminado. É morte certa!
- Eu ia comprar, mas tinha tanta gente na barraca, que não tive coragem.
- Eu quase trouxe, mas ele estava vendendo uns pastéis já fritos, já frios, que devem ter sobrado de ontem... ou de anteontem.
- Pôxa, mãe... a gente queria tanto... dá pra fazer em casa?
- Deusmelivreeguarde! Vocês sabem que eu não faço fritura em casa. Fica uma sujeira só e a casa fica cheirando uma semana!Saíamos de cabeça baixa, suspirando, apenas para voltar à carga na quarta-feira seguinte. Às vezes conseguíamos. Em geral, não.Uma barreira que nunca conseguimos romper foi a da raspadinha de praia e a do suco de revólver. A raspadinha de praia, segundo minha mãe, era inequivocamente feita com água de chuva, ou de sarjeta.
Os "sucos de revólver" eram aqueles refrescos multicoloridos, à venda até hoje em lugares selecionados e acondicionados em embalagens suspeitíssimas (e fascinantes para uma criança). Tinha de avião, de carrinho, de foguete, de revólver, de peixe (suco de peixe? Não. Suco de qualquer coisa colorida em "embalagem de peixe")... Mamãe dizia que as garrafas multicoloridas eram "pura tinta". Pura, porque eram "só" tinta e não porque a tinta fosse, necessariamente, pura e que a procedência era ainda pior que a das raspadinhas.O problema de não ter provado nunca um suco de revólver é que, com o passar dos anos, ele adquiriu uma aura de mistério, tornou-se "a coisa proibida". Outro dia, uns dois anos atrás, estive frente a frente com um suco de revólver, numa situação altamente favorável. Um fornecedor fez uma ação promocional na agência e deixou um saco inteiro de suquinhos e na criação. Coisas do mundo da propaganda, vai entender... "É hoje", pensei. "Vou me realizar". Fui detida já com a tesoura em punho.- Você vai tomar "isso"?
- Eu... er... acho que vou.
- Você é louca, Ana?
- Eu... acho que não. Sou?
- Mas isso é pura tinta!
(Ah, não! Foi minha mãe que mandou você aqui?)
- Mas...
- Pelamordedeus! Você tem filhos! Precisa viver para criá-los! E olha só! Olha aqui! Tem até uns negocinhos nadando no suco.
Aproximei o "revólver" do rosto e vi que, de fato, havia uma meia dúzia de pequenos fragmentos em suspensão.
- Deve ser da fruta _ disse, numa última tentativa.
- Fruta, Ana? Fruta??? Você acha MESMO que tem alguma fruta aqui?
- É. Acho que não.Acabei desistindo. Definitivamente, suco de revólver parece não fazer parte do meu futuro. Mas juro que se encontrar um dando sopa um dia e estiver sozinha, sem ninguém por perto, sem ninguém olhando, vou comprar e tomar escondido. Se eu morrer, vocês já sabem: foi um tiro de suco de revólver!


(Ana Téjo tem 37 anos, é publicitária, redatora, tradutora, nadadora, planejadora, cozinheira, mãe e escritora, quase nunca nesta ordem. Administra, sempre que possível, dois filhos elétricos, uma babá rabugenta, um trabalho eletrizante, uma mãe obstinada, um namorado apaixonante e uma vontade compulsiva de escrever. Ana Téjo)
Como tudo que tem gosto de infância é bom, deixo aqui o link de um vídeo com uma música que lembra a minha infância... Gostoso relembrar!... Bjs, Ju.
Lauro Corona e Glória Pires - João e Maria - 1978

Um comentário:

Anônimo disse...

Ei Ju! Até esqueci do trabalho quando comecei a ver seu blog! rsrs Muito lindo! Adorei!!!
Beijinho Carol

"A Felicidade só é real quando é compartilhada."
(Christofer Mccandles)